quinta-feira, 26 de março de 2015

O Amor em Visita

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.

Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seu ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz em embriaguez dentro do coração faminto.
Oh cabra no ventre e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Com uma flecha em meu flanco cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.


* Trecho de "O Amor em Visita" do livro "A Colher na Boca" de Herberto Hélder.

sábado, 5 de maio de 2012

Saída

Meus passos caíram dos meus sapatos,
para fora dos degraus.
Cansados de mim. Meus itinerários.
Meus pés desperdiçados.

Meu coração desperdiçado.
Lábio da alma. Meu externo.
Um susto no lugar da cabeça. Um peito dobrável.
Meus olhos náufragos.

O dia circulou o mundo de um janela à outra
e a manhã
amanheceu como seu eu fosse noite.
Faca luminosa
abriu estas páginas na cama.
Leu meu futuro
nas minhas mãos congeladas.
Um milhão de olhos apenados.

O espelho dobrou-se
negou-se o meu reflexo.
Estalou o destino.
Depois o trovão.

Vai, minha alma! Vai
e segue minha pequena asa!

domingo, 29 de abril de 2012

O Fenômeno Futuro

Um céu pálido, sobre o mundo que se esvai em decrepitude, vai talvez partir junto com as nuvens: os farrapos da púrpura repisada dos poentes se esmaecem num rio a dormir no horizonte submerso de raios e água. As árvores se entediam e, sob sua folhagem embranquecida (pela poeira do tempo mais do que aquela dos caminhos), ergue-se a casa de pano do Exibidor de coisas Passadas: muitos candeeiros esperam o crepúsculo e reavivam os rostos de uma turba infeliz, vencida pela moléstia imortal e o pecado de séculos, de homens junto de suas pobres cúmplices grávidas de miseráveis frutos com os quais há de perecer a terra. No silêncio inquieto de todos os olhos suplicando ao longe pelo sol que, sob a água, soçobra com o desespero de um grito, eis o mero aranzel: “Nenhum anúncio vos regala com o espetáculo interior, pois não existe agora pintor capaz de propiciar uma sombra triste. Eu trago, viva (e preservada através dos anos pela soberania ciência), uma Mulher de outrora. Uma certa loucura, ingênua e original, um êxtase de ouro, não sei mais o quê! por ela eleita, sai cabeleira se curva, com o encanto dos tecidos, em torno de uma face que ilumina a nudez sanguínea de seus lábios. Em lugar da veste vã, ela tem um corpo, e os olhos, semelhantes às pedras raras! Não valem esse mirar que se projeta de sua carne afortunada:seios suspensos como se estivessem cheios de um leite eterno, apontando para o céu, para as pernas polidas que retêm o sal do primeiro mar”. Lembrando –se de suas pobres mulheres, calvas, mórbidas e prenhes de horror, os maridos se comprimem: elas também, por curiosidade, melancólicas, querem ver.
Quando todos tiverem contemplado a nobre criatura, vestígio de alguma época já maldita, uns indiferentes, pois não terão possuído força de compreender, mas outros, aflitos, e a pálpebra úmida de lágrimas resignadas se contemplarão, enquanto que os poetas desses tempos, sentindo reacenderem-se olhos amortecidos, seguirão para sua lâmpada, ébrio o cérebro, por um instante, de uma glória obscura, tomados pelo Ritmo e no olvido de existir numa época que sobreviveu à beleza.

* Poema em prosa de Stéphanne Mallarmé. De 1875. Tradução de José Lino Grünewald.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Epílogo de "Réquiem: Um Ciclo de Poemas"

2

Uma vez mais volta o Dia da Lembrança.
Vejo, ouço, sinto por vocês todas:

aquela que mal conseguiu chegar ao fim,
aquela que já não vive mais em sua terra,

aquela que, balançando a bonita cabeça,
disse: “Volto aqui como se fosse o meu lar”.

Gostaria de poder chamá-las, a todas, por seus nomes,
mas levaram a lista embora, e onde posso me informar?

Para elas teci uma ampla mortalha
com suas pobres palavras que consegui escutar.

Sempre e em toda parte hei de lembrar-me delas:
delas não me esquecerei, nem numa nova miséria.

E se tamparem a minha boca fatigada,
através da qual jorra um milhão de gritos,

que seja a vez de todas elas me lembrarem,
na véspera do meu Dia da Lembrança.

E se, neste país, um dia decidirem
à minha memória erguer um monumento,

eu concordarei com essa honraria,
desde que não me façam essa estátua

nem à beira do mar, onde nasci –
meus últimos laços com o mar já se romperam –,

nem no jardim do Tsar, junto ao tronco consagrado,
onde uma sombra inconsolável ainda procura por mim,

mas aqui, onde fiquei de pé trezentas horas
sem que os portões para mim se destrancassem;

porque, mesmo na morte abençoada, tenho medo
de esquecer o som surdo das Marias Pretas,

de esquecer como os odiosos portões estalavam
e como a velha gemia qual animal ferido.

Das pálpebras imóveis, das pálpebras de bronze,
deixem que corram lágrimas qual neve fundida,

deixem que as pombas da prisão arrulhem na distância
e que os barcos deslizem em silêncio sobre o Neva.

* Trecho do poema "Réquiem: Um Ciclo de Poemas". De Anna Akhmátova. 1940. Tradução de Lauro Machado Coelho.


A Destruição

Sem cessar a meu lado o Demônio se agita,
E nada ao meu redor como um ar impalpável;
Eu o levo aos meus pulmões, onde ele arde e crepita,
Inflando-os de um desejo eterno e condenável.

Às vezes, ao saber do amor que a arte me inspira,
Assume a forma da mulher que eu vejo em sonhos,
E, qual tartufo afeito às tramas da mentira,
Acostuma-me a boca aos seus filtros medonhos.

Ele assim me conduz, alquebrado e ofegante,
Já dos olhos de Deus afinal tão distante,
Às planícies do Tédio, infindas e desertas,

E lança-me ao olhar imerso em confusão
Trajes imundos e feridas entreabertas
- O aparato sangrento e atroz da Destruição!

* Poema do livro "As Flores do Mal". De Charles Baudelaire. 1857. Tradução de Ivan Junqueira.


Manhã à Janela

Há um tinir de louças de café
Nas cozinhas que os porões abrigam,
E ao longo das bordas pisoteadas da rua
Penso nas almas úmidas das domésticas
Brotando melancólicas nos portões das áreas de serviço.
As ondas castanhas da neblina me arremessam
Retorcidas faces do fundo da rua,
E arrancam de uma passante com saias enlameadas
Um sorriso sem destino que no ar vacila
E se dissipa rente ao nível dos telhados.

* Poema de T. S. Eliot (1888-1965). Tradução de Ivan Junqueira.


Nascimento

As pedras riscam no tempo,a soma
dos seus minérios.
Sublinhadas pelo chão.

A terra desfaz-se em séculos
pela primeira vez
Outonos enchem suas mangueiras
pela primeira vez

Raios atravessam cristais
e primaveras
com suas grossas espadas de fumaça.

As luzes não fazem sombras.
Os cemitérios estão vazios

Um ventre enche-se de água
na palma de um trovão
conferindo o infinito.

Nas primeiras nuvens
mandará dois seios das montanhas
para lavar a América do Sul!

segunda-feira, 23 de abril de 2012

O Sentimento de um Ocidental

I
AVE-MARIA

Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros d'aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no mar, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vem sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera focos de infecção!

* Poema de Cesario Verde (1855-1886). No livro "Poesias Completas de Cesário Verde". Editora Ediouro.


Do Beco de Vila Rica

No beco da Vila Rica
tem sempre uma galinha morta.
Preta, amarela, pintada ou carijó.
Que importa?
Tem sempre uma galinha morta, de verdade.
Espetacular, fedorenta.
Apodrecendo ao deus-dará.

No beco da Vila Rica,
ontem, hoje, amanhã,
no século que vem,
no milênio que vai chegar,
terá sempre uma galinha morta, de verdade.
Escandalosa, malcheirosa.
Às vezes, subsidiariamente, também tem
- um gato morto.

No beco da Vila Rica tem
velhos monturos,
coletivos, consolidados,
onde crescem boninas perfumadas.
Beco da Vila Rica...
Baliza da cidade,
do tempo do ouro.
Da era dos "polistas",
de botas, trabuco, gibão de couro.

Dos escravos de sunga de tear, camisa de baeta,
pulando o muro dos quintais,
correndo pra o jeguedê e o batuque.

A estória da Vila Rica
é a estória da cidade mal contada,
em regras mal traçadas.
Vem do século dezoito,
vai para o ano dois mil.
Vila Rica não é sonho, inventação,
imaginária, retórica, abstrata, convencional.

É real, positiva, concreta e simbólica.
Involuída, estática.
Conservada, conservadora.
E catinguda.

Velhos portões fechados.
Muros sem regra, sem prumo nem aprumo.
(Reentra, salienta, cai, não cai,
entorta, endireita,
embarriga, reboja, corcoveia ...
Cai não.
Tem sapatas de pedras garantindo.)

Vivem perrengando
de velhas velhices crônicas.
Pertencem a velhas donas
que não se esquecem de os retalhar
de vez em quando.
E esconjuram quando se fala
em vender o fundo do quintal,
fazer casa nova, melhorar.
E quando as velhas donas morrem centenárias
os descendentes também já são velhinhos.
Herdeiros da tradição
- muros retelhados. Portões fechados.

Na velhice dos muros de Goiás
o tempo planta avencas.

Monturo:
Espólio da economia da cidade.
Badulaques:
Sapatos velhos. Velhas bacias.
Velhos potes, panelas, balaios, gamelas,
e outras furadas serventias
vêm dar ali.

Não há nada que dure mais do que um sapato velho
jogado fora.
Fica sempre carcomido,
ressecado, embodocado,
saliente por cima dos monturos.
Quanto tempo!
Que de chuva, que de sol,
que de esforço, constante, invisível,
material, atuante,
silencioso, dia e noite,
precisará de um calçado, no lixo,
para se decompor absolutamente,
se desintegrar quimicamente
em transformações de humo criador?...

Às vezes, um vadio,
malvado ou caridoso,
põe fogo no monturo.
Fogo vagaroso, rastejante.
Marcado pela fumaceira conhecida.
Fumaça de monturo:
Agressiva. Ardida.
Cheiro de alergia.
Nervosia, dor de cabeça.
Enjôo de estômago.
Monturo:
tem coisa impossível de queimar,
vai ardendo devagar,
no rasto da cinza, na mortalha da fumaça.

Monturo ...
Faz lembrar a Bíblia:
Jó, raspando suas úlceras.
Jó, ouvindo a exortação dos amigos.
Jó, clamando e reclamando do seu Deus.
As mulheres de Jó,
as filhas de Jó,
gandaiam coisinhas, pobrezas,
nos monturos do beco da Vila Rica.

Eu era menina pobrezinha,
como tantas do meu tempo.
Me enfeitava de colares,
de grinaldas,
de pulseiras,
das boninas dos monturos.

Vila Rica da minha infância,
do fundo dos quintais .. ,
Sentinelas imutáveis dos becos, os portões.
Rígidos. Velhíssimos. Carunchados.
Trancados a chave.
Escorados por dentro.
Chavões enormes (turistas morrem por elas).
Fechaduras de broca, pesadas, quadradas.
Lingüeta desconforme, desusada.
Portões que se abriam,
antigamente,
em tardes de folga,
com licença dos mais velhos.

Aonde a gente ia - combinada com a vizinha,
conversar, espairecer ... passar a tarde ...
Tarde divertida, de primeiro, em Goiás,
passada no beco da Vila Rica,
- a dos monturos bíblicos.
Dos portões fechados.
De mosquitos mil. Muriçocas. Borrachudos.
E o lixo pobre da cidade,
extravasando dos quintais.
E aquela cheiração ardida.
E a ervinha anônima,
sempre a mesma,
estendendo seu tapete
por toda a Vila Rica.
Coisinha rasteirinha, sem valia.
Pisada, cativa, maltratada.
Vigorosa.
Casco de burro de lenha.
Pisadas de quem sobe e desce.
Daninheza de menino vadio
nunca dão atraso a fedegoso,
federação, manjiroba, caruru-de-espinho,
guanxuma, são-caetano.
Resistência vegetal... Plantas que vieram donde?
Do princípio de todos os princípios.
Nascem à toa. Vingam conviventes.
Enfloram, sem amparo nem reparo de ninguém.
E só morrem depois de cumprida a obrigação:
amadurecer ... sementear,
garantir sobrevivência.
E flores ... migalhas de pétalas, de cores.
Amarelas, brancas, roxas, solferinas.
Umas tais de andaca ... boninas ...
Flor de brinquedo de menina antiga.
Flor de beco, flor de pouco caso.
Vagabundas, desprezadas.

Becos da minha terra ...
Válvulas coronárias da minha velha cidade.

(...)

* Trecho do poema "Do Beco de Vila Rica". Do livro "Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais". De Cora Coralina. 1965.


Ausência

Meu nome no papel,
segura a minha mão.
Minha voz
desaparece na tarde

como uma tempestade nos pulmões
amanhecendo.


Meus ossos embrulhados
dentro do meu passo lento
peregrinam
até a última respiração
seca
com cheiro de hora desgastada.


A ponta de uma agulha azul
costura meus olhos
nos meus tecidos mortos.
Como um rio recolhendo suas fontes.

Minhas tréguas no jardim
- floridas - peças de ouro
quadros e rubis dantescos.
Labores, emplastros.
Porcelanas, senhas,
ga
ve
tas.

Um último desejo estirado na última hora.
A garganta convence a última palavra: salgada.
À espera de um dedo que caiba nessa mão enorme. Imprecisa. Gloriosa.
Minha filha desenhou seu nome nela.
Deixem o meu sangue correr!
Deixem a janela como está.Deixem meu suspiro na estante.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Véspera

não.
chegar é
- ou a saída -
um incômodo
que fica
naquela
direção.

vou de cabeça
catando de ouvido
eu no fundo,
que
eu
não
existo.


cada vez mais
com a falta presa na vértebra

falta
eu

falto para
espantar
o
medo.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Orgulho da Cabeça

Fosse encaixada em outra parte e não assim,
Girando em seu soquete privado e preciso
Como sol encaixado numa junta da montanha ...
Mas, aqui, inclinando e soprando em meu pescoço,
Sem precedente na natura
Nem nas belezas da arquitetura,
Esvoaçando meu cabelo como um campo de milho,
Semeada ao acaso num canto esquecido da colina,
Minha cabeça está no topo de mim
Onde vivo mais e a maior parte do tempo,
Onde minha face lança um olhar introspectivo
Para o que está fora de mim,
E encara o desafio de outras coisas
Com desdém, por ser o que é.

Deste lugar de honra, gema
Do continente maior e preguiçoso bem abaixo,
Eu, ídola da cabeça,
Uma autocrata sentada, cruzando minhas intenções,
Olho e me preocupo com o resto com bondade,
Despacho os riachos de sentido para baixo
Para que explorem a selvagem terra semidesperta,
Tremendo continente desta ilha mínima,

E a civilizem o melhor que possam.

* Poema no livro "Mindscapes". De Laura Riding. Tradução de Rodrigo Garcia Lopes.


sexta-feira, 13 de abril de 2012

Brinde

Nada, esta espuma, virgem verso
Apenas denotando a taça;
Como longe afogam-se em massa
Sereias em tropa ao inverso.

Naveguemos, ó meus diversos
Amigos, eu já sobre a popa,
Vós a proa que rompe em pompa
As vagas de trovões adversos.

Empenho-me em pura voragem
Sem mesmo temer a arfagem
A, de pé, este brinde erguer:

Solitude, recife, estrela,
A não importa o que valer
O alvo desvelo em nossa vela.


* Poema de Stéphane Mallarmé. 1893. Tradução de José Lino Grünewald.


O Cemitério Marinho

Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
Um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Que lavor puro de brilhos consome
Tanto diamante de indistinta espuma
E quanta paz parece conceber-se!
Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e nítida reserva,
Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
— Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!

Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade — cheia de poder —
Eu me abandono a esse brilhante espaço,
Por sobre as tumbas minha sombra passa
E a seu frágil mover-se me habitua.

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!... Mas devolver a luz
Supõe de sombra outra metade morna.

Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
Sombria, amarga e sonora cisterna
— Côncavo som, futuro, sempre, na alma.

Sabes tu, prisioneiro das folhagens,
Golfo roedor de tão finos gradis,
Claros segredos para os olhos cegos
Que corpo a um fim ocioso me compele,
Que fronte o atrai a tal rincão de ossadas?
Um lampejo aqui pensa em meus ausentes.

Sacro, encerrando um fogo sem matéria,
Pouca de terra oferecida à luz,
Prezo este sítio, que dominam tochas,
Composto de ouro, pedras e ciprestes,
Onde mármores tremem sobre sombras.
O mar lá dorme, fiel, sobre meus túmulos.

Cadela esplêndida, afugenta o idólatra!
Quando, sorriso de pastor, sozinho
Apascento carneiros misteriosos
— Branco rebanho de tranqüilos túmulos —
Afasta dele as pombas temerosas
Os sonhos vãos, os anjos indiscretos.

Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escarva a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.

Os mortos estão bem, sob esta terra
Que os aquece e resseca seu mistério.
O meio-dia no alto, o meio-dia
Quedo se pensa em si e a si convém.
Fronte completa e límpido diadema,
Eu sou em ti recôndita mudança!

Eu, somente eu, contenho os teus temores!
Meus pesares, limitações e dúvidas
São a falha de teu grande diamante...
Em sua noite grávida de mármores,
Entanto, um povo errante entre as raízes
Tomou já teu partido, lentamente.

Dissolveu-se na mais espessa ausência;
Bebeu vermelho barro a branca espécie;
Passou às flores o dom de viver.
Dos mortos, onde as frases familiares,
A arte pessoal, as almas singulares?
Tece a larva onde lágrimas nasciam.

O riso agudo de afagadas jovens,
Olhos e dentes, pálpebras molhadas,
O seio ousado desafiando o fogo,
Sangue a brilhar nos lábios que se rendem,
Últimos dons e dedos que os defendem
— Tudo se enterra e ao jogo outra vez volta.

E tu, grande alma, acaso um sonho esperas,
Despido, então, das cores de mentira
Que a estes meus olhos a onda e o ouro mostram?
Cantarás, quando fores vaporosa?
Tudo flui! Porosa é minha presença;
A sagrada impaciência também morre.

Magra imortalidade negra e de ouro,
Consoladora com horror laureada,
Que seio maternal fazes da morte
— O belo engano, a astúcia mais piedosa!
Quem não conhece e quem não repudia
Esse crânio vazio, o riso eterno?

Pais profundos, cabeças desertadas,
Que sob o peso de tantas pazadas
Terra sois, confundindo os nossos passos!
O verdadeiro verme, irrefutável,
Não para vós existe, sob a lousa
Ele de vida vive e não me deixa.

Amor, talvez? Talvez ódio a mim mesmo?
Seu dente oculto está de mim tão próximo
Que qualquer nome, acaso, lhe convém.
Que importa!... Ele vê, quer, sonha, ele toca:
Minha carne lhe agrada, e até no leito
Vivo de pertencer a este vivente.

Zenão, cruel! Zenão, Zenão de Eléia!
Feriste-me com tua flecha alada,
Que vibra, voa e que não voa nunca.
O som engendra-me e a flecha me mata!
O sol... Ah, que sombra de tartaruga
Para a alma, Aquiles quedo e tão ligeiro!

Não, não!... De pé! No instante sucessivo!
Rompe meu corpo, a forma pensativa!
Bebe meu seio, o vento que renasce!
Esta frescura a exalar-se do mar
A alma devolve-me... Ó, poder salgado!
Corramos à onda para reviver!

Sim, grande mar dotado de delírios,
Pele mosqueada, clâmide furada
Por incontáveis ídolos do sol,
Hidra absoluta, ébria de carne azul,
Que te mordes a fulgurante cauda
Num tumulto ao silêncio parecido,

Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!

* Poema do livro "Charmes". De Paul Valéry. 1922. Tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Confia.


quinta-feira, 12 de abril de 2012

História

No canto da página
uma idéia lança
o abis-
mo

virando a folha
e a palavra cai
.

Vai embrionar uma nova língua
de ferro
num cálice vazio
de outro poeta antigo.